Desmatamento, lixo e queimadas ameaçam carnaubais no litoral do Piauí
Invasões em grandes áreas de carnaúba comprometem a biodiversidade local e a atividade econômica de comunidades tradicionais
Tão comum na paisagem piauiense que pode até passar despercebida por alguns, mas a verdade é que a carnaúba é um verdadeiro símbolo do Piauí. Chamada de árvore da vida, a palmeira tem grande relevância na cultura e economia do estado, mas, atualmente, vive ameaçada nas áreas rurais.
Mesmo com uma lei estadual que proíbe a derrubada das árvores dessa espécie e um decreto que estabelece regras para o manejo sustentável, não é difícil encontrar áreas em que o desmatamento vem ocorrendo de forma desordenada. No litoral do estado, carnaubais têm perdido espaço para construção de grandes empreendimentos ou dividindo espaço com o lixo.
Moradores de comunidades como Barra Grande e Macapá denunciam situações em desacordo com a legislação vigente e convivem com insegurança, sem saber a quem denunciar as irregularidades. Dentre os relatos recebidos pela EcoNós, está o caso de um carnaubal repleto de lixo e que também é alvo constante de queimadas, em Barra Grande, município de Cajueiro da Praia.
Segundo os moradores da região, a área fica próximo à lagoa que divide o bairro Borogodó da comunidade da Barrinha. “Já fui pessoalmente à Secretaria de Meio Ambiente do município para denunciar a situação, mas nunca foi resolvido. Cheguei a fazer vídeos da região para publicar, mas algumas pessoas foram até minha casa saber porquê estava filmando e me senti intimidada”, disse a moradora, que pediu para não ser identificada por medo de represálias.
Troncos de carnaúbas e lixo acumulado em carnaubal na Barra Grande / Foto: Morador local
Caso semelhante ocorre no Povoado Macapá, em Luís Correia, onde uma grande área de carnaúba foi desmatada para a construção de um condomínio de casas. A derrubada das árvores revoltou a comunidade, que também afirma não saber a quem recorrer. “Quando percebemos o que estava acontecendo, procuramos a Secretaria de Meio Ambiente do Estado que se limitou a dizer que a obra recebeu licenciamento e que seria feito um projeto de compensação ambiental. Mas a verdade é que já se passaram alguns anos desde que a obra começou e até agora nada foi feito em relação a essas ações compensatórias”, denuncia um morador da região, que também preferiu não se identificar.
Segundo a bióloga e ambientalista, Liliana Souza, a preservação das carnaúbas no litoral do Piauí enfrenta desafios sérios, assim como as áreas de manguezais, áreas de preservação permanente e de uso de comunidades tradicionais. “Como ativista ambiental percebo de perto o quanto a expansão urbana, acompanhada do turismo predatório e das atividades agrícolas não sustentáveis, têm levado a redução das áreas de carnaubal. Além disso, dentro dos instrumentos de licenciamento ambiental, não tem sido realizado nenhum tipo de compensação ambiental. E mesmo existindo fiscalização por parte dos órgãos ambientais, assim mesmo o trabalho ocorre de forma muito limitada porque falta estrutura de pessoal, equipamentos e recursos. Na maioria das vezes, quando percebemos a degradação, a situação já está de forma quase irreversível”, afirma.
Construções Sustentáveis: desafios e oportunidades no futuro urbano
O que diz a lei?
Instituída em setembro de 1983, a lei estadual nº3.888 proíbe a derrubada de carnaúba em áreas rurais de todo o território estadual e determina a aplicação de multa igual ao valor de 50% do salário de referência vigente para o Estado por cada árvore sacrificada. Já no âmbito federal, a lei federal nº 12.651/2012 também estabelece diretrizes para a gestão florestal e a proteção da vegetação nativa, o que inclui a carnaúba.
“Tanto em nível estadual quanto federal os carnaubais são reconhecidos como áreas de relevante interesse ecológico, econômico e cultural. No Piauí, por exemplo, temos um instrumento normativo que proíbe o corte raso da carnaúba, permitindo assim a regeneração das folhas. Isso leva em consideração a relevância econômica da palmeira. Em geral, as comunidades tradicionais conseguem fazer o manejo adequado. O problema está nesses casos de derrubadas indiscriminadas e uso indevido das áreas, sem levar em consideração a legislação”, destaca Liliana Souza.
Na opinião da ambientalista, o incremento nos recursos e a união da legislação estadual com a legislação federal são o caminho para manter a preservação dos carnaubais. “Dentro do Código Florestal os carnaubais se enquadram como vegetação nativa e áreas de preservação permanentes. As reservas legais também são instrumentos normativos que permitem a preservação das carnaúbas e possibilitam o manejo sustentável. Há ainda as áreas de usos restritos, que levam em consideração que nem todo local permite a implantação de qualquer tipo de empreendimento. Ou seja, são diversos instrumentos normativos que protegem as áreas de carnaubais e que devem ser respeitados”, conclui.
Cenário de devastação e abandono em carnaubal no litoral do piauiense / Foto: Morador local
A carnaúba e sua importância cultural e econômica
Não é à toa que a carnaúba é celebrada como a árvore da vida. Além da importância cultural, sendo considerada árvore símbolo do Piauí, a palmeira também se destaca pelo potencial econômico. Dela tudo se aproveita: desde o tronco utilizado em construções e movelaria, até o pó que serve para a produção da cera, fármacos e cosméticos.
E por falar em aproveitamento, não se pode esquecer da palha da carnaúba, que possui valor inestimável para a confecção de peças artesanais que geram oportunidade de emprego e renda para centenas de famílias.
Exemplo disso é a associação de artesãos Trançados da Ilha, fundada no início dos anos 2000, no bairro Ilha de Santa Isabel, em Parnaíba. A entidade reúne 25 famílias que vivem da produção de objetos como cestas, bolsas, utensílios para cozinha e decoração. Tudo feito a partir do trançado da palha, que permite diversas combinações.
“O artesanato eu comecei com 16 anos e para mim foi um ato de extrema necessidade. Eu já tinha uma filha e estava gestante de novo, e precisava de um trabalho. Aí passei e vi minha vizinha fazendo e pedi para ela me ensinar. Aprendi em um dia e no outro já estava levando para vender no mercado. A partir daí já começaram as encomendas e nunca mais parei”, diz Serrate Maria, fundadora da Associação Trançados da Ilha.
Serrate Maria, fundadora da da Associação Trançados da Ilha / Foto: Divulgação
O trabalho dos artesãos é feito com o uso de ferramentas simples, como tesoura, faca e agulha. A criatividade dos profissionais permite que a imaginação crie e inove sempre na produção, experimentando cores variadas, formas e desenhos. A dedicação à produção das peças já rendeu o reconhecimento dos artesãos nacional e internacionalmente.
“As peças produzidas aqui são comercializadas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, e já chegaram até em países como Finlândia e Bélgica. O trabalho com a carnaúba mudou não só na minha vida, como da maioria das pessoas aqui da Ilha, porque enquanto eu faço artesanato, tem os outros que fazem os móveis ou extraem o pó. Por isso, para nós a carnaúba é verdadeiramente a árvore da vida, porque desde as nossas casas de antigamente até nossa fonte de renda hoje é por meio dessa importante árvore”, afirma a artesã.
A partir de relatos como o de Serrate Maria e das denúncias citadas no início da reportagem é que os ambientalistas têm se preocupado com o futuro dos carnaubais no Piauí. “A falta de fiscalização efetiva tem levado a perda de consideráveis áreas de carnaubais, afetando diretamente a biodiversidade local e impactando no meio de subsistência das comunidades tradicionais. ONGs e iniciativas comunitárias têm atuado em parceria com universidades e outros órgãos públicos para ampliar a preservação das áreas, mas é importantíssimo que os municípios e o estado implementem mais ações de conservação e educação ambiental que possam reverter esse cenário de degradação”, conclui Liliana Souza.
*A Mídia EcoNós procurou a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semarh-PI) para se manifestar sobre as denúncias citadas no texto, mas até o fechamento da matéria não recebemos retorno.