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Hidrogênio Verde em Parnaíba: Promessa de futuro ou risco de colapso?

Onde falta água quase todos os dias, projeto de H2V vira prenúncio de colapso socioambiental em Parnaíba

Mas, afinal, o que é Hidrogênio Verde e o que isso significa na prática para os Parnaibanos?

Por: Carolina Simiema 15 maio 2025, 12:41

Parnaíba, no litoral do Piauí, é a segunda maior cidade do estado e sofre com um problema recorrente: a falta de água em diversos bairros do município. A crise no fornecimento de água expõe a fragilidade do sistema de abastecimento hídrico da região, mas também gera questionamentos acerca do projeto de instalação de uma usina de hidrogênio verde na cidade. Onde falta água quase todos os dias, um projeto que, segundo especialistas, consumirá cinco vezes mais água que toda a cidade, é prenúncio de um colapso socioambiental. 

O projeto é liderado pela multinacional espanhola Solatio e deverá ser instalado na Zona de Processamento de Exportações (ZPE) de Parnaíba. Em março deste ano, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin, assinou a resolução que autoriza a instalação do projeto, e, no último dia 30 de abril, véspera de feriado, o governador do estado do Piauí, Rafael Fonteles (PT), concedeu a licença que autoriza a Solatio a iniciar as construções, mesmo após audiência pública realizada uma semana antes com representantes das comunidades envolvidas e da sociedade civil, que ressaltaram suas preocupações em relação aos impactos ambientais do projeto.  

Mas, afinal, o que é hidrogênio verde?

O que é H2V e o que isso significa na prática para os Parnaibanos

O hidrogênio verde (H₂V) é apontado como uma das alternativas energéticas mais promissoras para a transição rumo a uma economia de baixo carbono. Mas, antes de tudo, é importante entender o que isso significa na prática — e o que isso tem a ver com a água de Parnaíba.

O hidrogênio verde é um gás que pode ser usado como combustível, ou seja, uma fonte de energia. Ele é chamado de “verde” porque é produzido com energia renovável, como a solar e a eólica. Para produzi-lo, é preciso pegar a água (H₂O) e separá-la em dois elementos: hidrogênio (H₂) e oxigênio (O). Esse processo se chama eletrólise e usa eletricidade para funcionar.

Na teoria, trata-se de uma solução limpa, já que não emite gases de efeito estufa. Mas, na prática, há um custo alto e frequentemente ignorado: o uso intensivo de água. Para produzir uma tonelada de hidrogênio verde, são necessários, em média, entre 9 e 20 mil litros de água — sem contar a água usada para resfriamento e outros processos industriais.

E para que serve esse hidrogênio? Ele pode ser usado como combustível em fábricas, navios, aviões ou até ser exportado para outros países. Mas essa energia não será usada pelas casas da população de Parnaíba. O objetivo da empresa que está se instalando na cidade é produzir o gás aqui e vender para fora — principalmente para a Europa e Asia, onde há uma grande demanda por energias mais “limpas”.

Em regiões com abundância hídrica, esse insumo pode não ser um problema. No caso de Parnaíba, no entanto, onde a população convive com torneiras secas por dias seguidos, especialistas e organizações da sociedade civil alertam para o risco de agravamento das desigualdades no acesso à água.

Ou seja, ficam os questionamentos: Como um projeto que consome tanta água pode ajudar uma cidade onde já falta água quase todo dia? Quem mais vai ganhar com isso? E quem vai pagar o preço?

Para o governo do estado, que deverá investir cerca de R$ R$ 27 bilhões no projeto, a construção da indústria que produzirá hidrogênio verde em Parnaíba, no entanto, vai também “gerar benefícios concretos, gerando emprego, gerando renda, gerando oportunidades”, como ressaltou Fonteles na ocasião da liberação da licença de instalação.

“O Programa de Capacitação Técnica e Aproveitamento da Mão de Obra Local se limita a mencionar que as ações ocorrerão ao longo da fase de implantação, sem qualquer detalhamento de cronograma, metas de capacitação ou parcerias com instituições como o SENAI. Considerando a proximidade do início das obras, já seria esperada a adoção de medidas concretas de qualificação profissional”, questiona Rhavena Madeira, advogada, cofundadora da Filha do Sol – organização da sociedade civil -, e integrante do Grupo de Trabalho sobre os Impactos das Energias Renováveis no Piauí (GT), formado por pesquisadores, professores e sociedade civil organizada.

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Irregularidades e impactos do projeto de hidrogênio verde

Print do estudo de impacto ambiental do hidrogênio verde

Na ocasião da audiência, projeto já possuía Licença Prévia, ou seja, em tese, já reconhecido como viável.

No dia 24 de abril, a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) promoveu uma audiência pública para discutir a viabilidade socioambiental do projeto e debater os impactos ambientais do SOLATIO H2V PIAUÍ. Participaram da reunião representantes da sociedade civil, responsáveis pelo empreendimento, agentes públicos, pesquisadores, especialistas e pessoas das comunidades, interessadas no esclarecimento do processo.  

Vale ressaltar que, na ocasião da audiência, o projeto já possuía Licença Prévia (LP) emitida sob o nº PI-LP.05695-1/2023, ou seja, discutiria-se na audiência algo que, em tese, já havia sido previamente reconhecida como viável pelo estado. Sobre isso, o secretário de Meio Ambiente, Feliphe Araújo, defendeu que a audiência do dia 24 seria para “tratar da licença de implantação da planta industrial, e não ainda do processo operacional em si”. Embora a LP, em seu inciso I, destaque que o documento atenderá, também, à fase de operação do empreendimento: “A LP aprova a localização e concepção da atividade, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas fases de instalação e operação.”

Rhavena Madeira explica que a Licença Prévia teria sido respaldada em uma Resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA) – de outubro de 2023 – que autorizava que o projeto pudesse avançar diretamente com a solicitação da LP, por meio de um Estudo Ambiental Preliminar (EAP), e sem a exigência de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ou audiência pública, o que, segundo ela, “tal entendimento se mostra conflitante com normas de hierarquia superior e abrangência nacional”.

“Nos termos do artigo 1º, inciso I, da Resolução CONAMA nº 09/1987, bem como do artigo 2º, §1º, da Resolução CONAMA nº 237/1997, a realização de audiência pública é etapa indispensável do processo de licenciamento ambiental de atividades com potencial significativo de degradação ambiental. Nesse sentido, o direito à participação pública constitui uma salvaguarda fundamental assegurada constitucionalmente, sendo indevido que uma norma estadual estabeleça procedimento mais permissivo que o previsto pela legislação federal”, declara. 

A licença de autorização do projeto, emitida pelo Governo do Estado, uma semana depois, confirma o emaranhado do processo. O rito normal, de acordo com a engenheira sanitarista ambiental, Carolina Penteado, “ é apresentar o EIA/RIMA durante a fase preliminar”. A SEMARH, entretanto,  informa, por meio do site oficial, que o estudo está disponível para consulta desde o dia 18 de março de 2025, 35 dias antes da audiência. No entanto, conforme estipulado pela Resolução nº 009/1987 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), “estabelece-se um período de quarenta e cinco dias, iniciando-se a partir da data em que o estudo for publicado, para a solicitação da realização de uma audiência pública”. 

Além disso, consta no site da SEMARH que o estudo foi analisado no dia 29 de abril, cinco dias depois da audiência e um dia antes da licença de autorização. Sendo assim, significa que, a partir dessa data, o processo já estava formalmente apto a seguir para a emissão da licença, como de fato ocorreu no dia 30 de abril. 

“Eles disseram na audiência pública que ainda não tinham analisado o EIA-RIMA. Como que em cinco dias eles analisaram todas essas páginas”, questiona Carolina Penteado sobre o Estudo de Impacto Ambiental com 1.981 páginas. 

Print do site da Semarh

Licença foi autorizada cinco dias após a audiência pública

Omissões críticas e riscos negligenciados 

Além das fragilidades no processo de licenciamento, o projeto de hidrogênio verde da Solatio levanta uma série de preocupações que, até agora, permanecem sem resposta adequada por parte do poder público e da empresa.

Um dos principais problemas está no subdimensionamento dos impactos ambientais. A Área de Influência Direta (AID) do empreendimento foi delimitada em apenas 1.000 metros, desconsiderando elementos-chave como os pontos de captação de água — estimados em 3.800 m³ por hora — e o lançamento de efluentes no Rio Parnaíba, da ordem de 438 m³/h. A delimitação ignora, ainda, os possíveis efeitos sobre a Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta do Parnaíba, uma unidade de conservação federal com ecossistemas sensíveis, diretamente interligada ao curso do rio.

As comunidades locais também foram excluídas do processo decisório. Em desacordo com a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o projeto não realizou consultas prévias, livres e informadas às populações potencialmente impactadas, como pescadores, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais. A única audiência pública, realizada em um auditório urbano, restringiu o acesso físico e informacional — com um Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) de quase duas mil páginas, sem linguagem acessível nem alternativas de apresentação simplificada.

Outros riscos relevantes sequer foram estudados. Não houve avaliação de impactos cumulativos considerando outros empreendimentos já previstos na Zona de Processamento de Exportação (ZPE). Também não foram apresentados dados sobre o transporte da amônia — substância derivada do hidrogênio verde — incluindo trajetos, protocolos de segurança e possíveis riscos à população de Parnaíba e Luís Correia, por onde a substância deverá passar.

Apesar do discurso de sustentabilidade, a empresa não comprovou que sua matriz energética será integralmente renovável, já que a conexão ao Sistema Interligado Nacional (SIN) permite o uso de fontes não renováveis.

Por fim, os programas de mitigação e contrapartidas sociais permanecem vagos. O plano de monitoramento ambiental é genérico, sem metas ou cronogramas definidos. A proposta de capacitação de mão de obra local não especifica parcerias com instituições como o SENAI, nem apresenta qualquer planejamento concreto. Tampouco há compromissos explícitos com investimentos sociais duradouros, como políticas de ESG (Ambiental, Social e Governança) que deixem um legado positivo para a região.

Projeto é barrado pela Aneel por risco de sobrecarga no sistema elétrico

No início de maio, o projeto da Solatio sofreu um revés importante: foi indeferido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que recusou o pedido de conexão da planta à subestação Parnaíba III, prevista para operar em 2028. A decisão da agência seguiu recomendação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que apontou risco de sobrecarga estrutural na rede elétrica da região e possibilidade concreta de colapso de tensão em diversas subestações adjacentes.

O ONS também destacou a ausência de reforços estruturantes no curto prazo no Plano de Outorgas de Transmissão de Energia Elétrica (POTEE), o que inviabiliza a conexão segura do empreendimento no horizonte pretendido.

Apesar disso, a Solatio segue apostando no projeto, que visa atender principalmente os mercados da Europa e da Ásia, com preço estimado abaixo de US$ 3 por quilo de hidrogênio. A empresa já firmou memorandos de intenção com compradores internacionais, e, segundo apuração da MegaWhat, os investimentos dependeriam apenas de trâmites formais, uma vez que a parte financeira já estaria equacionada.

 

Carolina Simiema

Jornalista, fundadora e diretora-executiva da EcoNós. Acredita no poder da comunicação para mobilizar comunidades e influenciar políticas públicas.

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